TRAGÉDIA CLIMÁTICA ANUNCIADA PROVOCA MORTE E DESTRUIÇÃO NO RS
173 pessoas perderam a vida, 41 estão desaparecidas e milhares ficaram desabrigados na maior enchente enfrentada pelo Rio Grande do Sul. Uma tragédia anunciada pelo insano ataque à natureza*
O mundo assistiu estarrecido a tragédia climática acontecida no Rio Grande do Sul no mês de maio. Essa ocorrência é o passo posterior ao aquecimento global, que é resultado do fator econômico de exploração dos bens naturais. Ela já é parte das manifestações no novo ciclo histórico-ambiental: as mudanças climáticas provocadas pelo superaquecimento. Embora o Brasil produza apenas 4% dos gases do efeito estufa, o efeito global é implacável. Mesmo que Estados Unidos, China e parte da Europa sejam os grandes produtores dos gases que aquecem a atmosfera, o Brasil não pode passar despercebido porque o agronegócio produz impactos imensuráveis na destruição de grandes parcelas do cerrado e do bioma amazônico, que altera substancialmente o ordenamento climático.
Registra a história que Napoleão e Hitler perderam a guerra porque foram lutar contra um general chamado Inverno. Suas intenções era vencer os russos, mas entraram numa guerra que não podiam vencer. É certo que contra a natureza nada pode resistir. Aparentemente, a devastação do Rio Grande do Sul é um drama humano com centenas de mortes humanas e milhares de outras mortes como sonhos de famílias e construções de uma vida, mas é preciso considerar que essa catástrofe é resultado de mudanças climáticas.
As correntes polares não conseguem vencer as concentrações de ondas de calor do centro do país e provocam bloqueio no circuito normal das modulações climáticas. Esse anteparo gera as chuvas excessivas, que tem como consequência a tragédia que o mundo assistiu.
O certo é que o acontecimento do sul do Brasil não é um fato isolado. No mesmo período, chuvas antes nunca vistas ocorreram no deserto em Dubai, que provocou alagamentos alarmantes. Inundações atingiram os estados da Baviera e Baden-Württemberg, no sul da Alemanha. Diversas cidades tiveram de ser evacuadas e decretaram estado de emergência com o volume de chuva de um mês registrado em apenas um dia.
Como escreveu o jornalista Moisés Mendes, durante a tragédia, “há sabotagem contra o meio ambiente do entorno das cidades, de áreas rurais, rios, encostas. Sabotagem pela ocupação do solo urbano, da especulação imobiliária, do vale tudo em nome do poder econômico. Tudo é ação destrutiva autorizada pelo poder político a serviço do poder empresarial urbano e do agronegócio. Até os ratos sabem disso. É um plano, um planejamento, uma articulação para faturar” e assegurar uma ação humana financista.
O resultado disso é que esse plano acaba conspirando contra seus idealizadores e executores. Porque muitos deles continuam achando que terão sempre o controle da situação. Que vão controlar os rios e suas margens degradadas. Que controlarão a destruição e as inundações das cidades. Estrondoso engano.
Os números da tragédia demonstram o resultado dessa postura amoral de conspirar contra a natureza, desde a ocupação dos espaços dos rios até a supressão das coberturas florestais nas montanhas que agravam as consequências das inundações.
O “mundo” do poder econômico sabe que as tragédias climáticas serão cada vez mais frequentes e recorrentes. Num debate sobre aquecimento global no Fórum Econômico de Davos/Suíça do ano passado, uma mesa de 12 debatedores, 10 eram as grandes seguradoras do mundo. Elas apresentaram dados mais assustadores que o Greenpeace e sabem avaliar as perdas catastróficas que acontecerão a cada décimo de aquecimento global. O mundo sabe as consequências da insana exploração do meio ambiente. O Rio Grande do Sul passa a ser um case mundial, por absorver as grandes e pequenas destruições de todas as esferas É um modelo de destruição mostrado a toda Terra, que nem a mais cruel concepção de tirania poderia ter imaginado. No Rio Grande do Sul, a natureza não poupou ninguém. Os pobres perderam muito do pouco que tinham e os ricos, muito do muito que têm.
Números
Os indicadores da Defesa Civil Estadual demonstram a extensão da tragédia Foram afetados 476 dos 497 municípios do Estado. 572,7mil pessoas foram desalojadas, sendo afetadas 2.3milhões de pessoas. 806 ficaram feridos e 41 permanecem desaparecidas. A maior tragédia é a perda de vidas humanas. 173 pessoas perderam a vida. O número de mortes só não foi maior porque 27 mil agentes de segurança pública do Estado, da força nacional e de outras províncias se somaram a milhares de voluntários que de barcos, lanchas, motos aquáticas e outros equipamentos resgataram 77 mil pessoas.
Os governos tentam contabilizar perdas. Fala-se em bilhões de Reais. No entanto, há uma irresponsável inoperância e planejamento para gestão de crise, informação básica à população e procedimentos de emergência para salvar vidas. A única preocupação dos últimos governos é a flexibilização da observância das normas ambientais para ocupação urbana e rural, contrariando inclusive parâmetros, estudos e orientações técnicas de especialistas. Os parlamentos estadual e municipais do Rio Grande do Sul aprovam de modo irresponsável a inobservância de regras ambientais sob o deplorável argumento de desenvolvimento econômico. O resultado não tardou a aparecer.
Solidariedade
Outra vez, as organizações da sociedade civil foram a grande força de socorro aos flagelados. A solidariedade apareceu em todas a sociedades, em todos os lugares, em todas as comunidades. Somente a Cáritas Arquidiocesana de Porto Alegre, movimentou um exército de colaboradores e voluntários numa rede com 131 entidades conectadas e atuando de modo cooperativo.
Conforme matéria publicada pelo Vatican News, somente durante o mês de maio, a entidade distribuiu um volume expressivo de suprimentos. Foram distribuídas até o dia 31 de maio já haviam sido entregues 1.846 cestas básicas. Soma-se a isso, o repasse de 54,6 toneladas de alimentos não-perecíveis direcionados para as cozinhas de abrigos, locais de preparação de marmitas, famílias acolhedoras e entrega direta às famílias flageladas, além de várias caixas de kit alimentícios e biscoitos prontos para o consumo.
Outro item importante para a composição da dieta alimentar é o repasse de leite em pó. Através de uma parceria com a CONAB, o Mensageiro da Caridade assumiu a logística de transporte e entrega de 67 toneladas do produto. Campos salienta a importância do leite em pó por tratar-se de “um produto de fácil preparo e fundamental, principalmente para a dieta de crianças e idosos”.
Para quem teve de sair às pressas de casa para os abrigos ou para quem está retornando às residências, material de limpeza e higiene pessoal é gênero de primeira necessidade. Na mobilização de doações, o Mensageiro da Caridade sugeriu a doação desses itens. A resposta foi positiva. A entidade repassou 758 caixas com produtos de higiene e limpeza e centenas de frascos com produtos que auxiliam na higienização das residências. Para fortalecer essa ação, a oficina de marcenaria da entidade, que chegou a ser alagada pela enchente, passou a produzir material para auxiliar na limpeza de residências e locais de trabalho. A equipe fabricou rodos de madeira para auxiliar na retirada da lama que invadiu as residências.
A entidade atuou com uma rede constituída por mais de 130 paróquias, entidades da sociedade civil, ONGs, CTGs, comunidades indígenas, escolas, sub-prefeituras, CRAS, Centros POP, abrigos e centros sociais, que acolhem flagelados ou atendem famílias em situação de vulnerabilidade social atingidas pela enchente. O Diretor Executivo do Mensageiro da Caridade, Luís Carlos Campos, afirmou que essa organização foi uma forma cooperativa de agilizar o atendimento. “Ordenamos essa logística com transporte da própria entidade, de organizações parceiras e de voluntários para fazer chegar os suprimentos onde eram necessários. Mesmo nos locais de difícil circulação em razão dos alagamentos que ilharam comunidades, os suprimentos chegaram”. Nos espaços da Igreja Católica, foram organizados pelo menos 35 abrigos para acolher os desabrigados. Alguns deles com atendimento humanizado exemplar como os que acolheram mães e criança autistas e pacientes oncológicos, que necessitaram de serviço especializado dado a demanda do público usuário.
Família São José
A Congregação das Irmãs de São José de Chambery atuou em várias frentes. Uma das ações mais expressivas foi organizada pelo PROJARI, em Guaíba. A sede do projeto social serviu de base para uma grande mobilização que recebeu e distribuiu diversos tipos de ajuda. As atividades socioeducativas foram interrompidas pela decretação de calamidade pública e a equipe direcionou seus esforços para cuidar da vida das pessoas flageladas.
O Centro Social organizou três grandes ações, contemplando as necessidades em diversas situações, conforme as competências da equipe e as inúmeras demandas que surgiram em razão da dimensão da tragédia.
Uma das necessidades imediatas que surgiram foi a acolhida aos desabrigados. As estruturas foram utilizadas para a abrigar famílias que tiveram suas residências inundadas. Foram recebidas famílias residentes no bairro COHAB Santa Rita. O PROJARI também acolheu uma equipe de profissionais da área da saúde provenientes de Minas Gerais e São Paulo que se deslocaram ao Rio Grande do Sul para auxiliar no atendimento aos flagelados. A equipe de profissionais era formada por profissionais de clínica geral, psicologia, neuropsicoterapia e veterinária.
Outra ação importante aconteceu em locais de abrigamento de flagelados. Esses espaços se tornam ambientes de grande diversidade. Por isso, o exercício da boa convivência é um desafio. Com intuito de contribuir com a harmonização dessa convivência, a equipe de monitores e instrutores desenvolveu nos abrigos atividades de recreação, apoio à convivência, atividades lúdicas e esportivas com os diferentes públicos. Também a instituição promoveu ações de escuta ativa. Segundo a Coordenadora de Projetos do PROJARI, Cristina Araújo, essa atividade foi importante porque as famílias abrigadas estavam afetadas emocionalmente. “Levar uma palavra, uma atitude de conforto e consolar os flagelados foi uma ação amorosa de cuidar das pessoas fragilizadas emocionalmente. Alegrar o espaço consistiu numa ação importante para amenizar o sofrimento e reduzir o impacto, para reforçar a retomada e reconstrução de suas vidas”.
Alagamentos, casas destruídas, acúmulo de resíduos e perdas de bens e utensílios domésticos. O cenário de desespero exigiu uma intervenção de socorro com itens básicos para flagelados, famílias acolhedoras e a quem voltava para casa. A terceira grande ação do PROJARI exigiu a mobilização da solidariedade. O apoio surgiu de muitos lugares. Mato Grosso do Sul, São Paulo, de instituições e empresas da Rio Grande do Sul destinaram suprimentos de primeira necessidade. A equipe coordenada pela Ir. Griselda Martinez Morales realizou a entrega a domicílio para promover o contato direto e levar uma mensagem de conforto e uma grande dose de renovação da esperança. Além de alimentos não perecíveis, as famílias flageladas receberam roupas e agasalhos, calçados, produtos de higiene a material de limpeza.
Em Montenegro, o projeto “Promoção Humana, desenvolveu uma série de ações para atender aos flagelados do Vale do Caí. A equipe trabalhou na produção diária de pães e marmita. Os voluntários e as religiosas realizaram a confecção de cobertores e agasalhos. A casa das irmãs foi transformada numa oficina de trabalho para cuidar da vida.
Outra instituição da congregação que se mobilizou para auxiliar os flagelados foi o Colégio São José de Pelotas. A comunidade educativa realizou uma grande campanha na cidade para socorrer os flagelados. A escola recebeu agasalhos, materiais de higiene, produtos de limpeza, cobertores e alimentos não perecíveis. Os itens foram recebidos nas portarias do colégio, no horário de funcionamento da escola. Todo o material arrecadado foi encaminhado para a Defesa Civil do município que organizou o atendimento às vítimas da enchente na Zona Sul do Estado.
A escola também abrigou integrantes do Corpo de Bombeiros de vários estados que atuaram no resgate aos flagelados. Os militares eram oriundos Ceará, Maranhão, Amazonas, além de unidades de outras regiões do Rio Grande do Sul.
Migrações climáticas
A tragédia inaugurou um novo fenômeno no Brasil. As notícias internacionais sempre informavam que grandes contingentes populacionais da África e do Oriente Médio migravam para outras regiões do mundo em razão da falta de água ou de condições básicas para sobrevivência. A “África Saariana” é aqui. O povo gaúcho passou a conviver com essa realidade.
O Fórum Permanente de Mobilidade Humana do RS recebeu na última semana a informação de que muitos migrantes haitianos e venezuelanos já deixaram o território gaúcho rumo a Santa Catarina e Paraná. Algumas cidades já estão se organizando para receber. O município de Pinhalzinho e as empresas do município estão oferecendo 500 vagas de trabalho, lotes e local de moradia para pessoas que perderam suas residências.
Dentro do próprio estado a migração interna começa a se concretiza. Somente na segunda semana de junho, 50 famílias que residem no Vale do Taquari buscaram emprego nas cidades de Farroupilha e Caxias do Sul. Esse movimento deve se intensificar nas próximas semanas. Esta é uma projeção das associações do comércio e da indústria da Região da Serra. A alegação é a falta de perspectiva de trabalho com a destruição das indústrias locais e a desesperança na reconstrução e na retomada das empresas familiares.
A tragédia não mudou apenas o cenário local. Suas consequências são imprevisíveis e irão constituir novos desafios para o Estado e para o mundo. Como dizia o escritor Vitor Hugo, “o futuro tem vários nomes: para os fracos, ele é inatingível; para os temerosos, ele é desconhecido; para os corajosos, ele é a oportunidade”. A tragédia oferece uma oportunidade para novas atitudes de cuidado da vida e do planeta. Ação urgente!
*Jornalista Elton Bozzetto – RP 10.417
Fotos: Projari arquivos
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